segunda-feira, fevereiro 23, 2004

Chegou a hora do quero, posso e mando?!

(Publicado na edição de 29 de Maio de 2002 do jornal POSTAL DO ALGARVE)

A entrada em funções do novo Governo confirmou a anunciada incapacidade e falta de preparação do PSD e do PP para governarem o País e enfrentarem pela positiva a crise das finanças públicas, agravando o estado geral de ansiedade e desmotivando quem ainda se empenhava em contrariar o bota-abaixo...

A pretexto da crise orçamental, guardaram na gaveta as eleitoralistas descidas dos impostos (pelo contrário, aprovaram a subida do IVA em dois pontos percentuais, afectando todas as famílias portuguesas e colocando em risco o tecido empresarial das zonas fronteiriças!), desistiram de investimentos públicos essenciais para o desenvolvimento nacional (neste domínio, o Orçamento Rectificativo aprovado há uma semana na Assembleia da República é o símbolo da vergonha, pois até os mapas do PIDDAC foram escondidos!!), preparam-se para fragilizar irremediavelmente a capacidade produtiva dos serviços públicos e colocar no desemprego milhares de pessoas com vínculos laborais com carácter precário...

Os níveis de desorientação dos responsáveis governamentais atingiram os píncaros com a novela mexicana que envolve a anunciada reestruturação (ou será, mesmo, destruição?!) da RTP e do serviço público de comunicação. Ao arrepio de todos os pareceres dos especialistas em comunicação, contrariando a tendência desgovernamentalizante que alastra pela Europa e ignorando a legislação vigente no nosso País, o Governo pretende impôr um Conselho de Administração e um único canal sem publicidade, vender o segundo canal e o emagrecimento (?!) das empresas do Grupo RTP. Como o Conselho de Opinião não atendeu os seus propósitos, antecipando o veto ao CA proposto, o Governo efectuou apressadamente uma proposta de alteração legislativa para limitar as suas competências (depois de defendê-las com unhas e dentes aquando da revisão da Lei da Televisão em 1996!!), colocando em causa o Estado de Direito Democrático em que vivemos, como sublinhou oportunamente o Bastonário da Ordem dos Advogados!!!

Lamentavelmente, a gritaria que tem proliferado pelo País sobre esta matéria impediu-nos de reflectir sobre a evolução da RTP nos últimos anos que, surpreendentemente, também teve alguns aspectos positivos! Apesar dos inúmeros erros de gestão, João Carlos Silva acabou com os pagamentos por debaixo da mesa através de despesas condidenciais (já agora, para quando a suspensão do vencimento da agora deputada Maria Elisa?!), consolidou aquilo que as anteriores gestões socialistas tinham começado, libertando a informação do espartilho político-partidário imposto pelos governos cavaquistas e introduziu verdade e rigor na gestão dos espaços informativos e na aquisição de programas. Os renovados centros regionais de Castelo Branco, Coimbra, Évora, Faro e Vila Real começaram a mostrar ao País e às regiões aquilo que acontece em cada sítio, os espaços de informação política, social, económica, internacional, cultural, desportiva e científica proliferam pelos seis canais produzidos na 5 de Outubro, nos últimos meses o carisma de Emídio Rangel sentiu-se no regresso da qualidade à antena com grandes reportagens, debates e entrevistas, os noticiários estão mais atraentes e aparentam seriedade e profissionalismo.

Apesar dos debates que ocasionalmente têm sido promovidos sobre o serviço público de televisão, o Governo parece não saber (ainda) aquilo que quer fazer, propondo agora a criação de uma comissão independente (?!) para estabelecer os critérios de funcionamento da futura empresa com base num orçamento apertadíssimo e sufocante. As limitações financeiras da RTP e o incumprimento sucessivo dos compromissos do Estado com a empresa são a causa da situação actual. Apesar da reestruturação do Grupo RTP e do ambicioso programa de rescisões e reformas antecipadas que permitiu a dispensa de centenas de funcionários, a subida do serviço da dívida tem impedido a empresa de equilibrar as suas contas e os salários só estão assegurados até Junho...

Atendendo à especificidade do serviço público e das numerosas minorias que pretende alcançar e satisfazer, reforçando e levando ao Mundo a cultura portuguesa e efectuando uma ligação preciosa e essencial às comunidades (já que o prometido Ministério também se ficou pelos prospectos eleitorais!), parece-me essencial a manutenção dos dois canais actuais, um deles mais generalista, concorrendo em pé de igualdade com as privadas e contribuindo para regularização do mercado publicitário, e outro virado para a informação temática e para as comunidades, regionais ou deslocadas no estrangeiro, recorrendo até aos programas provenientes das produtoras e das televisões privadas, quando estes sejam considerados de interesse geral. Uma televisão atenta à evolução da tecnologia e da metodologia, capaz de usar todas as possibilidades que elas proporcionam, da internet em banda larga à televisão interactiva, sobre os novos meios de transmissão hertziana ou com base nas redes de fibra óptica. Como Dominique Wolton, sustento que “a televisão pública e generalista é um pilar da democracia e da identidade cultural das sociedades” e, mal de nós, se confiarmos aos brasileiros ou aos empresários do sector audiovisual a defesa da língua portuguesa e do nosso património histórico!

A questão do financiamento parece-me outro aspecto essencial para ser analisado fria e pragmaticamente. Perante o cenário actual e para manter uma televisão pública independente, parece-me inevitável a redefinição e actualização da “taxa” da radiodifusão (actualmente incluída na conta da energia eléctrica), corrigindo algumas dúvidas sobre a sua constitucionalidade e promovendo a sua justa repartição pelos fornecedores dos serviços – a rádio e a televisão pública, de âmbito nacional, e as estações de radiodifusão locais sem fins lucrativos e consideradas de utilidade pública – explicando aos cidadãos contribuintes a justiça desta medida inadiável. Por outro lado, as transferências anuais do Estado deveriam ser calculadas e contratualizadas de acordo com os serviços efectivamente prestados e afectadas orçamentalmente aos ministérios da Ciência, Cultura, Educação e dos Negócios Estrangeiros / Instituto Camões. Ainda, rentabilizando o seu arquivo, considerado o terceiro melhor a nível mundial, e as participações noutras empresas do sector. Por fim, até pela sua função reguladora, a participação das televisões públicas no mercado publicitário é fundamental para garantir a sua estabilidade financeira e a divulgação dos acontecimentos de carácter cultural, desportivo e educativo não lucrativos, com limites claros e tabelas de preço acessíveis.

Sem mais adiamentos nem prorrogações, é tempo de pensar (bem) e de agir (melhor), salvaguardando o serviço público de comunicação, uma conquista histórica comparável aos serviços de saúde ou de educação. Acima de tudo, é necessário que os actuais detentores do poder político tenham bom senso e resistam à tentação de usá-lo de forma abusiva e desrespeitando direitos constitucionalmente consagrados.

Em caso contrário, só nos resta dizer, “perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!”

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