terça-feira, maio 27, 2008

Quem vos avisa, vosso amigo é!


Num artigo de opinião publicado no Diário de Notícias, Mário Soares aconselha o Partido Socialista a fazer uma reflexão profunda sobre a pobreza e as desigualdades sociais...

Justificando-se com o
Relatório da União Europeia (Eurostat) e o trabalho sobre a pobreza em Portugal, coordenado pelo Prof. Alfredo Bruto da Costa, ambos já contestados pelo Governo, Mário Soares relembra alguns episódios da história recente e lança um alerta aos governantes...

Apesar dos recados óbvios e dos destinatários indicados, recomenda-se a leitura por todos aqueles que se entendem como... gente de esquerda!

8 comentários:

Anónimo disse...

“São as desigualdades, estúpido”

Aumentar a cobertura da contratação colectiva e impostos mais progressivos são os instrumentos mais eficazes para combater as desigualdades de rendimentos.

por Pedro Adão e Silva (Investigador do Instituto Universitário Europeu), in Diário Económico, 2008.05.27

Sazonalmente, a pobreza regressa à agenda mediática e, como sempre, os dados são apresentados de forma estática, sem que seja identificada qualquer dinâmica nas desigualdades em Portugal. O modo como foi divulgado o relatório sobre a situação social na Europa no final da semana passada não foi excepção.

Se olharmos para os indicadores, uma coisa resulta clara: ao contrário do que é frequentemente referido, o principal problema político português é um padrão de desigualdades que não encontra paralelo nas democracias ocidentais. O combate ao desemprego e a promoção do emprego, bem como a disciplina das contas públicas deveriam ser vistas apenas como variáveis instrumentais para Portugal se tornar um país menos desigual. Parafraseando uma frase de Bill Clinton, o problema português “são as desigualdades, estúpido”. A diferença é que aqui o estúpido não é o Governo de cada momento, mas sim a manifesta incapacidade de se promover uma coligação social que traga este tema de modo consequente para o topo da agenda política.

Desse ponto de vista, os alertas mediáticos podem ser boas ajudas se servirem para enfatizar o problema que colectivamente enfrentamos, mas serão certamente péssimos auxílios se, como tende a acontecer, se limitarem a apresentar os dados como se nada tivesse mudado e como se nada, do ponto de vista das políticas públicas, tivesse sido feito nas últimas décadas.

É que de cada vez que se apresentam os dados sobre a pobreza, desvalorizando o conjunto de políticas que Portugal tem desenvolvido, está-se a dar um importante contributo para subestimar o papel da intervenção pública na diminuição das desigualdades. E a verdade é que, como revelam as comparações internacionais, o que faz variar as desigualdades não é apenas a variação no PIB, são, também, as opções de cada país em termos de políticas públicas.

Portugal tem uma taxa de pobreza muito elevada no contexto europeu – em 2006 era de 18%, quando por exemplo na Suécia era de 12%. Acontece que, considerando as taxas de pobreza antes das transferências sociais, a nossa posição não é muito diferente da dos nossos parceiros europeus. Enquanto em Portugal, o risco é de 29%, no caso sueco é de 25%. Este dado serve para demonstrar que a percentagem do produto destinada a despesa social (25% em Portugal e 32% na Suécia) é decisiva para explicar a ‘performance’ de cada país.

Mas um olhar mais fino sobre os dados revela que Portugal tem tido maior capacidade no combate às formas mais severas de pobreza do que face ao conjunto das desigualdades. Desde 1995 até 2006, Portugal fez baixar a intensidade da pobreza total, mas isso tem acontecido muito por força da melhoria da situação dos idosos (de 26% para 17%). Onde Portugal continua a ter maior rigidez é entre os pobres em idade activa (apenas de 31% para 25%).

Esta dinâmica não é independente de, ao contrário do que acontecia antes de 1995, estarmos hoje mais próximos da prática europeia no que toca às políticas vocacionadas para responder à pobreza daqueles que estão fora do mercado de trabalho – de que são exemplos o rendimento mínimo, as prestações familiares com discriminação positiva, os aumentos diferenciais nas pensões baixas e os complementos de pensões com condição de recursos. Mas o sucesso, sempre relativo, no combate à severidade da pobreza, não só não foi independente dos ciclos políticos, como não pode servir de desculpa para continuarmos a ter níveis de desigualdade intoleráveis. Até porque, convém não esquecer, é essa a medida sintética do sucesso de uma governação à esquerda.

Acontece que, se já se tem provado difícil desenvolver políticas de combate à pobreza extrema – basta recordar os ataques pornográficos de que foi alvo o rendimento mínimo –, não é difícil de antecipar o que aconteceria se o combate às desigualdades passasse a ser a prioridade política nacional. Afinal, os instrumentos mais eficazes para combater as desigualdades de rendimentos são conhecidos: aumentar a cobertura da contratação colectiva e tornar os impostos mais progressivos. Ou seja, dar uma nova centralidade aos sindicatos e à negociação e fazer com que as políticas fiscais contrariem a dispersão salarial, redistribuindo a favor dos primeiros vintis de rendimento e disponibilizando recursos para a dinamização de serviços sociais às famílias. Querem apostar que a indignação social que existe em torno da pobreza desapareceria rapidamente?

Anónimo disse...

Muito boas, as palavras sábias do Dr. Mário Soares, um verdadeiro homem de esquerda, daqueles que actualmente escasseiam nos lugares de destaque desta pobre terra.

Basta de tecnocratas, que por ignorância, incompetência ou outros atributos, só têm beneficiado os grandes interesses.
Onde está:
- A prometida liberalização das farmácias;
- O fim da perseguição que a ASAE faz aos produtos oriundos das pequenas produções agrícolas que ainda existem, às tasquinhas que praticam preços para o povo;
- O aumento da oferta de cursos na área da saúde, para suprimir as nossas necessidades;
- A política activa para impedir a desertificação do interior;
- O reconhecimento de que estamos a assistir a um agravamento da criminalidade violenta, reconhecer o problema com humildade, é um ponto de partida para resolver a situação!;
- A verdadeira reforma da função pública, que só deveria seleccionar aqueles que sabem gerir/optimizar/maximizar os recursos que têm ao seu dispor. Os trabalhadores portugueses têm uma excelente reputação internacional, Luxemburgo é um exemplo. A palavra-chave é gerir melhor, não atacar os pobres trabalhadores nesta guerrilha de classes profissionais tão em voga, é de baixo nível promover a manipulação de classes, por exemplo nas dicotomias público/privado, professores/cidadãos, médicos/utentes, juízes/utentes;
- Uma verdadeira estratégia para os transportes, que penalize o transporte rodoviário de mercadorias e beneficie o ferroviário, o consumo de combustível de dois veículos pesados equivale ao de um comboio que transporta 40 a 50 vezes mais. A economia e o ambiente anseiam por esta medida;
- Uma politica de ordenamento justa, que penalize os concelhos do litoral, que ocupam vastos espaços com elevados valores naturais e compense os concelhos do interior pelos valores tão acerrimamente salvaguardados. Aljezur está quase na sua totalidade inserido na Reserva Ecológica Nacional, é o jardim do Algarve, já Loulé que não apresenta menos valores naturais, constrói por todo o lado, em matas, zonas húmidas, dunas, arribas, barrocal carsificado. Resultado, Loulé tem tantos recursos, que até disponibiliza café e bebidas sem limitações aos seus funcionários, Aljezur luta por apurar recursos para a sua manutenção. A solução é polémica, mas simples, se querem jardins no interior têm que pagar, implemente-se uma perequação, todos os concelhos têm que ter as mesmas oportunidades, se Loulé tem 10% da sua área impermeabilizada, estão todos os outros têm esse direito. Loulé quer construir mais, então compensa aqueles que não utilizam a sua área;
- A competitividade da economia, equivaler os preços do combustível aos de Espanha, traduz-se num aumento da procura interna, arrecadando-se o mesmo volume de impostos, com a diferença de que a economia não se mantém agoniada, é deprimente ter que aportar avultadas receitas aos nuestros hermanos, mas não resta outra opção para esta teimosia;
- A verdadeira justiça, que penalize em tempo útil os infractores, que penalize aqueles que praticam crimes mesmo sendo menores, um menor que rouba sabe o que faz. Dar trabalho e profissão aos presos, acabar com a droga nas prisões, é dar dignidade e futuro aqueles que vão pagar a sua divida à sociedade;
- Uma solidariedade responsável, que só beneficie aqueles que verdadeiramente precisam de ajuda, subsidiar pessoas com capacidades para trabalhar sem a contrapartida de prestação de trabalho comunitário, é injusto para aqueles que trabalham, tem que se dar mérito aos trabalhadores;
- O ensino universitário para todos, o actual valor das propinas é implacável na selecção dos futuros estudantes, são seleccionados pela carteira e não pelo mérito;
- O fim do lobby das grandes construtoras, alimentado pelos impostos dos portugueses, para concretizar obras que não incorporam mais-valias na economia, o TGV não aportará quaisquer benefícios palpáveis à economia;
- O combate efectivo à corrupção, as propostas do Dr. Cravinho foram para a gaveta;
- A dignidade daqueles que trabalham e não auferem salários para suprimir as suas necessidades básicas, é humilhante trabalhar e passar fome.

Bem já chega, estou a ser chato!!!!

Desculpem o desabafo, mas sinto-me na obrigação de exteriorizar os meus fantasmas, por mais absurdos que eles pareçam.

Anónimo disse...

Direcção do PS irritada com "aviso" de Soares

in Diário de Notícias, 28/05/2008

por João Pedro Henriques e Hélder Robalo com Lusa

Causou incomodidade no Governo e no PS o artigo de ontem, no DN, onde Mário Soares aconselhou o PS a fazer uma "reflexão profunda as questões que nos afligem mais: a pobreza, as desigualdades sociais, o descontentamento das classes médias". José Sócrates deu sinal dessa incomodidade evitando responder a jornalistas, em Angra do Heroísmo, na sessão de encerramento das jornadas parlamentares do PS. "Hoje não faço declarações", disse, seguindo logo para o púlpito, onde falou aos deputados do "momento de dificuldade"que Portugal atravessa, relativizando-o num contexto internacional: "É um momento de dificuldade que Portugal enfrenta, que todos os países da Europa enfrentam."

Amanhã Sócrates voltará a ser fustigado com os avisos do "pai fundador" do PS, em mais um debate na Assembleia da República. Ontem ensaiou alguns argumentos, usando a técnica, habitual, de culpar o passado, com referências à "situação social muito desequilibrada" herdada dos governos de Durão e Santana.

Quem não escondeu o desgaste foi Mário Lino. Falando no Porto, à margem da inauguração de uma nova linha do metro, o ministro das Obras Públicas desabafou: "O PS e o Governo não estão a dormir e à espera que Mário Soares faça um aviso para de repente dar conta do problema."

Logo a seguir tentou suavizar: "Os avisos são importantes porque demonstra que essa sensibilidade é muito forte dentro do PS. É bom que assim seja e o Dr. Mário Soares é o exemplo de uma pessoa que sempre esteve atenta a esse tipo de problemas. A sociedade é muito vasta e tem muitos problemas para os quais temos de olhar e dar conta."

Por outras palavras: "Estou de acordo com Mário Soares, que é preciso que, nesta altura, um Governo com as características do PS seja muito sensível às questões da pobreza e àquilo que são as necessidades das pessoas com maiores dificuldades. Isso é absolutamente óbvio."

Depois das declarações de Lino, o ministro da Presidência, Pedro Silva Pereira, também ele participando, nos Açores, nas jornadas parlamentares do PS, iniciou a tradicional operação de controlo de danos. A operação consiste sempre no mesmo: se não o vences, junta-te a ele. "Mário Soares tem toda a razão. É preciso dar uma atenção especial aos mais desfavorecidos", disse o ministro aos jornalistas. Trata-se, acrescentou, de uma "mensagem convergente com as preocupações do PS". "É uma preocupação de sempre do PS. O PS sempre deu atenção ao combate à pobreza e tem uma atenção redobrada neste momento", acrescentou, ao mesmo tempo que sublinhava algumas medidas, como o aumento do abono de família para os agregados mais desfavorecidos ou o congelamento até ao final do ano do preço do passe social.

Depois, no encerramento na reunião, Sócrates acrescentaria que "é justamente nos momentos de dificuldade que é preciso mais firmeza no rumo". Recusou por isso ceder "à facilidade ou à demagogia", isto apesar da sua "total compreensão" com os que sofrem mais os problemas decorrentes da alta do preço do petróleo. Agora, avisou, "o dever do Governo é utilizar a margem de manobra que consegue para ajudar os sectores mais frágeis".

Sócrates aproveitou ainda a oportunidade para começar já a combater teses que, no PSD, vão ganhando espaço, como o fim do carácter universal do Serviço Nacional de Saúde (o que Manuela Ferreira Leite e Passos Coelho defendem). "Queremos um SNS que sirva todos por igual, que todos tenham acesso ao mesmo."

Igualmente posta de parte está, no entender do PS, a privatização de parte da Segurança Social, também defendida no PSD. "Querem um regime social obrigatório privado, criar um limite a partir do qual as contribuições sejam entregues para os caprichos da bolsa", criticou, insistindo na necessidade de uma "segurança social pública, mas eficiente, ao serviço da igualdade."

"Quem vos avisa"

Ainda no artigo no DN, Soares avisou - e dizendo "quem vos avisa vosso amigo é" - para a possibilidade de o PS perder votos à esquerda se o Governo não conseguir a "resolução destas questões essenciais, que tanto afectam a maioria dos portugueses". "Se o não fizerem, o PCP e o BE - e os seus lideres - continuarão a subir nas sondagens. Inevitavelmente. É o voto de protesto, que tanta falta fará ao PS em tempo de eleições."

Também face a esta constatação - que aliás peritos em sondagens já reconheceram como sendo uma tendência "para ficar" (ver DN de 19 de Maio) - a técnica da cúpula socialista foi não alimentar controvérsias: Vitalino Canas, porta-voz do PS, reconheceu: "Estamos cientes dessa dificuldade que existe, da possibilidade de deslocação de votos para um certo sector."

Anónimo disse...

Quando o fundador do PS era criticado por deixar avançar a fome

por PEDRO CORREIA, in DN, 2008.05.28

Hoje Mário Soares aponta o dedo crítico ao Governo do PS, dizendo que os socialistas não podem ignorar a pobreza em Portugal. Mas já houve um tempo em que era ele o visado: quando chefiava o Executivo, na primeira metade dos anos 80, Soares foi alvo de críticas num quadro social mais duro do que o actual. Também então estavam em causa questões como a pobreza, as desigualdades sociais e o descontentamento das populações mais desfavorecidas - feridas onde o ex-Presidente da República pôs o dedo, no seu artigo publicado na edição de ontem do DN.

Hoje crítico, ontem criticado. Personalidades como o bispo de Setúbal estiveram na primeira linha da contestação ao Governo de bloco central que Soares encabeçou entre 1983 e 1985. Nessa altura registavam-se grande bolsas de pobreza em regiões como a península de Setúbal, o que levou às denúncias firmes do bispo, D. Manuel Martins, e a grandes manifestações contra o Executivo marcadas pela presença de bandeiras negras - um símbolo internacional da fome. Estavam ainda por chegar os fundos estruturais da União Europeia que anos depois, já com Cavaco Silva como primeiro-ministro, permitiram construir grandes infra-estruturas no País e melhorar as condições socio-económicas da generalidade dos portugueses.

Durante vários anos (muito antes de Durão Barroso proclamar que o País estava "de tanga"), Mário Soares foi o rosto das restrições. Foi ele quem teorizou sobre a necessidade de "pôr o socialismo na gaveta", ainda durante o seu primeiro governo, entre 1976 e 1978. Generalizou-se na época a expressão "apertar o cinto", relacionando-a precisamente com Mário Soares. Hoje é consensual que o fundador do PS foi muito melhor Presidente da República do que primeiro-ministro.

Já como chefe do Estado, Soares deixou de ser criticado para passar a ser crítico em questões relacionadas com a pobreza. Trocara as responsabilidades executivas pela "magistratura de influência", apertando o cerco ao Executivo de maioria absoluta do PSD. Cavaco Silva, o primeiro-ministro da altura, jamais esquecerá as "presidências abertas" em que Soares denunciava as bolsas de pobreza e até de miséria que permaneciam no País apesar de nenhuma o deve ter incomodado tanto como a efectuada na região de Lisboa, em 1993, com a intenção expressa de mostrar que a riqueza estava muito mal distribuída no País. No fundo, algo não muito diferente do que sucede agora.

Com uma diferença: Cavaco está hoje em Belém e não faz "presidências abertas" contra o Governo.

Anónimo disse...

O bom conselho de Soares a Sócrates

in Editorial, DN, 2008.05.28

Num país como o nosso em que um milhão de pessoas sobrevive com menos de dez euros por dia, é indispensável escutar vozes como a de Mário Soares, que num lúcido artigo, publicado na edição de ontem do DN, apelou ao Governo PS para não ignorar o agudizar das desigualdades sociais.

O pai da democracia portuguesa emprestou o peso das suas palavras a uma causa justa, pois a crise lavra num tecido social debilitado. No 1.º trimestre, 137 mil portugueses confessaram a sua impotência e desistiram de continuar a procurar emprego, um abandono que maquilha as estatísticas do desemprego (passam do contingente de desempregados para o de "inactivos"), mas aumenta as manchas de pobreza.

Numa altura em que 41% dos desempregados já não têm direito a subsídio, o primeiro-ministro fará bem em seguir o conselho do fundador do seu partido e dar a prioridade à adopção rápida de políticas de combate ao agravamento das desigualdades sociais.

Soares teve o mérito de colocar no topo da agenda política um assunto que já lá devia estar, demonstrou que um político nunca se reforma, e relembrou que Portugal não pode prescindir da sabedoria e experiência dos seus senadores.

Ao alertar para os riscos de hemorragia de votos para a esquerda, caso Sócrates persista em não dar ouvidos ao descontentamento das classes médias, Soares revela que continua a ser um homem de partido.

E ao chamar a atenção para a ênfase que os candidatos à liderança do PSD têm posto nos novos pobres e na questão social, apontou os holofotes para a obsoleta arquitectura de um sistema partidário em que as diferenças entre os dois partidos de governo não são observáveis à vista desarmada. (...)

Anónimo disse...

Ouçam o que ele diz

in JN, 2008.05.28, por José Leite Pereira (Director)

Há duas maneiras de olhar para o artigo que Mário Soares ontem escreveu no Diário de Notícias uma é desdenhar porque foi escrito por ele; outra é ler atentamente cada uma das linhas , que constituem um alerta ao PS e ao Governo.

É bem verdade que os mais velhos, os que conheceram Mário Soares a meter o socialismo na gaveta, os que sabem como reagia às críticas podem ser tentados a sorrir. Mas que o sorriso seja de ternura por ver um político, passada a barreira dos 80 anos , ter a clarividência que Soares exibe e, sobretudo, a disponibilidade para, nesta altura da vida, vir colocar os pontos nos ii, rodeando-se de cuidados mas não deixando nada de fora.

Soares não é um político qualquer. Sem exagero, ele é o pai do Portugal democrático nascido no pós- -25 de Abril e que não descambou noutra ditadura muito por força de Soares. O caminho da Europa foi Soares que o desbravou. Não foi, seguramente, o melhor primeiro-ministro que tivemos, mas recordamo-lo como um bom Presidente da República.

A mensagem de Soares não é boa dentro de um espírito da "ternura dos 80". É boa, muito para além disso.

Seria bom que o Governo soubesse conviver como facto de um ex-tanta coisa lançar alertas sobre as bolsas de pobreza, as desigualdades sociais e o descontentamento da classe média.

O facto é que poucos políticos como Soares sabem ler os sinais, interpretar os descontentamentos, perceber onde poderá estar uma saída . É bom recordar que foi ele e nenhum outro a obrigar os jornais a inventar o termo "animal político". Soares fala de pobreza e riqueza ("ostensiva e muitas vezes inexplicável"), volta a discordar das políticas seguidas por Blair, e explica, preto no branco porque razão Bloco e PCP vão subindo nas sondagens.

Por táctica defensiva, alguns governantes poderão ser tentados a recordar e a sorrir de alguns erros de Soares, ou a achar desnecessários os seus alertas. É mau presságio. Ouçam o que ele diz.

Anónimo disse...

É infame criticar um dos maiores humanistas de Portugal, com esta pseudo retórica que se julga possuidora de dons supremos.
Ainda ontem na RTP1, o Dr. Soares falou desta elite que se julga iluminada e na sua incapacidade em prever a catástrofe que agora nos assola.

Quem cospe no passado, não é digno do presente e do futuro.

Anónimo disse...

POBRE PORTUGAL

por Fernanda Câncio (jornalista), in DN, 2008.05.30

Um relatório sobre 25 Estados membros da UE refere Portugal como tendo, no período de 2000 a 2004, um dos mais baixos rendimentos per capita - com 960 mil pessoas a viver com menos de 10 euros por dia - e maior desigualdade na distribuição de riqueza; um estudo de Alfredo Bruto da Costa, reputado especialista na matéria, certifica que pouco ou nada se tem evoluído no combate à pobreza, calculando que 46% da população passaram por esse estado entre 1995 e 2000. Parece pois lícito concluir que a democracia portuguesa falhou dois dos seus objectivos essenciais: promover a coesão social e melhorar o nível de vida.

Sucede que, estudando o tal relatório europeu que tanto alarme - justamente - desencadeou, a situação se complexifica. Desde logo, este admite que é difícil comparar países só com base em indicadores quantitativos do rendimento de cada agregado, já que os mesmos 10 euros compram na Polónia o dobro do que na Dinamarca (os dois extremos da escala, na qual Portugal está em 11.º), evidenciando surpresas na caracterização qualitativa da pobreza. Assim, menos de 5% da população portuguesa não têm acesso a uma refeição "decente" (com carne, peixe ou equivalente) cada dois dias. O mesmo sucede na Bélgica, enquanto no Reino Unido, Alemanha, França e Itália a percentagem ultrapassa os 6%. Serão 5% os portugueses que não conseguem pagar as contas básicas - contra 6/7% de belgas, finlandeses e franceses, e 10% de italianos -, e menos de 20% os que afirmam não estar em condições de assumir uma despesa inesperada, uma percentagem só ao nível da sueca, já que todos os outros membros apresentam valores superiores. E são 17%, ao nível da Alemanha e da Finlândia (dois dos países com mais alto rendimento per capita), os agregados que não conseguem ter carro, TV a cores, telefone, ou máquina de lavar, ou têm contas em atraso ou não acedem à tal refeição cada dois dias.

Dados europeus mais recentes acrescentam perplexidades: se Portugal tem, em 2006, uma taxa de pobreza (correspondendo ao número de agregados com cerca de 400 euros/mês/pessoa) de 18%, dois pontos acima da média da UE, está ao nível da Irlanda, três pontos abaixo da Grécia, dois pontos abaixo da Espanha e da Itália e um ponto abaixo do Reino Unido. Longe da Noruega, da Dinamarca, da Suécia e da Holanda (entre os 10 e os 13%), é certo. Mas sendo estes valores respeitantes aos rendimentos dos agregados após "prestações sociais" - ou seja, após pensões e subsídios -, há uma extraordinária constatação a fazer: antes dessas prestações, Portugal tem uma taxa de pobreza de 25%, igual à da França e inferior à da média da UE (26%), assim como da Irlanda (33%), da Noruega (30%) e da Finlândia e Suécia (29%). Por outro lado, se esta taxa desceu apenas dois pontos desde 1995, a outra desceu cinco pontos, de 23% para 18%, no mesmo período. Parece que a democracia, afinal, serve para alguma coisa - e que um país é tanto mais pobre quanto o quisermos pobre. Nada de novo, mas é sempre bom lembrar.