quarta-feira, janeiro 04, 2006

O Presidente da República - III


Ao longo dos últimos dias, a(s) competência(s) do Presidente da República e o seu relacionamento com os demais órgãos de soberania têm feito correr muita tinta. Não só pelas diferentes interpretações que cada um tem do articulado constitucional, mas também pela forma como se pretendem conquistar eleitores...

Como já vimos no primeiro dos artigos sobre esta matéria, a aplicação do princípio da separação de poderes é claramente assumida ao definir que "os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição", acrescentando ainda que "nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei." Claro como a água, sublinhando-se que todavia há poderes exclusivos e indelegáveis...

Sendo assim, passamos a incluir os artigos constitucionais integrantes do capítulo II do título II da parte respeitante à organização do poder político em Portugal, os quais se debruçam sobre "a competência do Presidente da República".


"CAPÍTULO II
Competência

Artigo 133.º
(Competência quanto a outros órgãos)
Compete ao Presidente da República, relativamente a outros órgãos:
a) Presidir ao Conselho de Estado;
b) Marcar, de harmonia com a lei eleitoral, o dia das eleições do Presidente da República, dos Deputados à Assembleia da República, dos Deputados ao Parlamento Europeu e dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;
c) Convocar extraordinariamente a Assembleia da República;
d) Dirigir mensagens à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;
e) Dissolver a Assembleia da República, observado o disposto no artigo 172.º, ouvidos os partidos nela representados e o Conselho de Estado;
f) Nomear o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 1 do artigo 187.º;
g) Demitir o Governo, nos termos do n.º 2 do artigo 195.º, e exonerar o Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 4 do artigo 186.º;
h) Nomear e exonerar os membros do Governo, sob proposta do Primeiro-Ministro;
i) Presidir ao Conselho de Ministros, quando o Primeiro-Ministro lho solicitar;
j) Dissolver as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nelas representados, observado o disposto no artigo 172.º, com as necessárias adaptações;
l) Nomear e exonerar, ouvido o Governo, os Representantes da República para as regiões autónomas;
m) Nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República;
n) Nomear cinco membros do Conselho de Estado e dois vogais do Conselho Superior da Magistratura;
o) Presidir ao Conselho Superior de Defesa Nacional;
p) Nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, quando exista, e os Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, nestes dois últimos casos, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Artigo 134.º
(Competência para prática de actos próprios)
Compete ao Presidente da República, na prática de actos próprios:
a) Exercer as funções de Comandante Supremo das Forças Armadas;
b) Promulgar e mandar publicar as leis, os decretos-leis e os decretos regulamentares, assinar as resoluções da Assembleia da República que aprovem acordos internacionais e os restantes decretos do Governo;
c) Submeter a referendo questões de relevante interesse nacional, nos termos do artigo 115.º, e as referidas no n.º 2 do artigo 232.º e no n.º 3 do artigo 256.º;
d) Declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, observado o disposto nos artigos 19.º e 138.º;
e) Pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República;
f) Indultar e comutar penas, ouvido o Governo;
g) Requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de normas constantes de leis, decretos-leis e convenções internacionais;
h) Requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas, bem como a verificação de inconstitucionalidade por omissão;
i) Conferir condecorações, nos termos da lei, e exercer a função de grão-mestre das ordens honoríficas portuguesas.

Artigo 135.º
(Competência nas relações internacionais)
Compete ao Presidente da República, nas relações internacionais:
a) Nomear os embaixadores e os enviados extraordinários, sob proposta do Governo, e acreditar os representantes diplomáticos estrangeiros;
b) Ratificar os tratados internacionais, depois de devidamente aprovados;
c) Declarar a guerra em caso de agressão efectiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República, ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a sua reunião imediata, da sua Comissão Permanente.

Artigo 136.º
(Promulgação e veto)
1. No prazo de vinte dias contados da recepção de qualquer decreto da Assembleia da República para ser promulgado como lei, ou da publicação da decisão do Tribunal Constitucional que não se pronuncie pela inconstitucionalidade de norma dele constante, deve o Presidente da República promulgá-lo ou exercer o direito de veto, solicitando nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada.
2. Se a Assembleia da República confirmar o voto por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, o Presidente da República deverá promulgar o diploma no prazo de oito dias a contar da sua recepção.
3. Será, porém, exigida a maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, para a confirmação dos decretos que revistam a forma de lei orgânica, bem como dos que respeitem às seguintes matérias:
a) Relações externas;
b) Limites entre o sector público, o sector privado e o sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção;
c) Regulamentação dos actos eleitorais previstos na Constituição, que não revista a forma de lei orgânica.
4. No prazo de quarenta dias contados da recepção de qualquer decreto do Governo para ser promulgado, ou da publicação da decisão do Tribunal Constitucional que não se pronuncie pela inconstitucionalidade de norma dele constante, deve o Presidente da República promulgá-lo ou exercer o direito de veto, comunicando por escrito ao Governo o sentido do veto.
5. O Presidente da República exerce ainda o direito de veto nos termos dos artigos 278.º e 279.º

Artigo 137.º
(Falta de promulgação ou de assinatura)
A falta de promulgação ou de assinatura pelo Presidente da República de qualquer dos actos previstos na alínea b) do artigo 134.º implica a sua inexistência jurídica.

Artigo 138.º
(Declaração do estado de sítio ou do estado de emergência)
1. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência depende de audição do Governo e de autorização da Assembleia da República ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a sua reunião imediata, da respectiva Comissão Permanente.
2. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, quando autorizada pela Comissão Permanente da Assembleia da República, terá de ser confirmada pelo Plenário logo que seja possível reuni-lo.

Artigo 139.º
(Actos do Presidente da República interino)
1. O Presidente da República interino não pode praticar qualquer dos actos previstos nas alíneas e) e n) do artigo 133.º e na alínea c) do artigo 134.º
2. O Presidente da República interino só pode praticar qualquer dos actos previstos nas alíneas b), c), f), m) e p) do artigo 133.º, na alínea a) do artigo 134.º e na alínea a) do artigo 135.º, após audição do Conselho de Estado.

Artigo 140.º
(Referenda ministerial)
1. Carecem de referenda do Governo os actos do Presidente da República praticados ao abrigo das alíneas h), j), l), m) e p) do artigo 133.º, das alíneas b), d) e f) do artigo 134.º e das alíneas a), b) e c) do artigo 135.º
2. A falta de referenda determina a inexistência jurídica do acto."

Para concluir esta série de artigos, em próxima oportunidade abordaremos o articulado respeitante ao Conselho de Estado - órgão político de consulta do Presidente da República.

8 comentários:

Anónimo disse...

obrigada, excelente 2006 p/si tb!

Anónimo disse...

O PRESIDENTE-TREINADOR

por Vital Moreira *

in Público, 2006.01.03

Há metáforas que valem todo um programa. Na sua muito discutida entrevista ao Jornal de Notícias, Cavaco Silva utilizou a imagem desportiva do "treinador" para se referir ao papel do Presidente da República. "Às vezes" - disse ele -, "a equipa não é má, mas precisa de um novo treinador." No caso, evidentemente, a "equipa" é o Governo e o novo "treinador" seria o próprio entrevistado.

Contradizendo todos os seus anteriores protestos retóricos de não interferência na esfera governativa, o candidato da direita fixou com essa sugestiva imagem o seu entendimento inequivocamente intervencionista da função presidencial.

Até agora, a referência consensual do papel presidencial entre nós era a de "árbitro" - também ela oriunda do foro desportivo -, sendo essa uma excelente representação do "poder moderador" do Presidente no nosso sistema constitucional. Neste contexto, a substituição da imagem do árbitro pela de treinador só pode ter o propósito deliberado de marcar uma substancial diferença de concepção do sentido e âmbito da intervenção presidencial. O árbitro é necessariamente exterior ao desempenho dos agentes do "jogo político", competindo-lhe designadamente regular de forma imparcial, super partes, as relações entre eles (designadamente a maioria e as oposições) e sancionar os seus excessos. O treinador é quem forma a equipa, quem a orienta, quem define a sua estratégia e dispõe sobre a sua táctica em cada momento. Nada mais diferente do que esses dois papéis. A principal diferença é que o árbitro não joga nem toma partido. Provavelmente para ilustrar o conceito, foi na mesma entrevista que o referido candidato "sugeriu" a criação de um pelouro governamental dedicado a acompanhar as empresas estrangeiras a operar em Portugal. Confere perfeitamente: a primeira tarefa do "treinador" é efectivamente a composição da equipa...

Com esta inovação metafórica, Cavaco Silva introduziu nas eleições presidenciais um facto adicional de imprevisibilidade política e de insegurança institucional. Doravante, não são lícitas dúvidas sérias sobre os seus propósitos intervencionistas em relação ao Governo. Depois de ter mandado silenciar as muitas vozes presidencialistas entre os seus apoiantes, o candidato vem, ele próprio, sufragar dessa forma enviesada, mas rotunda, a agenda do "activismo presidencial" na área governativa.

Fica por esclarecer qual é a substância de tal protagonismo presidencial. O que porém fica claro é que na metáfora do "treinador" cabe tudo e mais alguma coisa. E, por menos exuberante que seja o treinador, a sua vocação natural é mandar na "equipa", ou seja, no Governo. O facto de tal concepção não ter o mínimo apoio constitucional (pelo contrário) não parece apoquentar os defensores dessa tese. Pretendendo legitimar esse entendimento extremista dos poderes presidenciais, os seus autores atacam a posição dos que supostamente defendem que o Presidente "nada pode fazer", num maniqueísmo que tem tanto de errado como de demagógico e populista, jogando subliminarmente com o suposto "senso comum" de que o Presidente tem de "mandar alguma coisa".

Nunca é demais sublinhar que, no nosso sistema constitucional, o Presidente da República é o único cargo que pressupõe à partida um inquestionável sentido de equilíbrio, moderação, previsibilidade e responsabilidade. Por um lado, o Presidente não responde politicamente perante ninguém. Não pode ser demitido antes do fim do seu mandato; a própria responsabilidade penal está sujeita a requisitos que a tornam difícil de efectivar. Por outro lado, as suas decisões, mesmo quando inconstitucionais, não estão sujeitas ao escrutínio do Tribunal Constitucional. Se o Presidente, por exemplo, demitir o Governo fora das condições constitucionais ou exercer o "veto de gaveta" em relação a qualquer diploma, não há meio de impedir ou revogar tais situações. O cargo presidencial radica por isso num pressuposto de confiança política e pessoal quanto à sua sensatez e quanto à sua fidelidade constitucional. No dia em que o cargo fosse ocupado por um lunático ou por um inimigo da Constituição (o que não é o caso, bem entendido...), o destino da República estaria em sério risco.
Num do seus escritos sobre a Constituição de Weimar de 1919 - a primeira Constituição a prever um sistema bi-representativo não presidencialista, com um Presidente directamente eleito mas desprovido de funções executivas - um autor da época (Carl Schmitt) atribuiu ao Presidente o papel de "guardião da Constituição". Não se tratava somente de velar pela conformidade constitucional das decisões do Parlamento e dos governos, mas também de cuidar pelo regular funcionamento das instituições e impedir a subversão do sistema constitucional (para o que o Presidente detinha poderes excepcionais em situação de crise). Com as devidas adaptações - desde logo, pela existência de um Tribunal Constitucional, a quem cabe a fiscalização da constitucionalidade das normas jurídicas -, a imagem do guardião da Constituição, no sentido de garante do regular funcionamento das instituições e do sistema de governo, é aplicável à função presidencial no nosso sistema constitucional. Entre outras coisas, o Presidente goza do poder de desencadear junto do Tribunal Constitucional todos os mecanismos de controlo da constitucionalidade (a começar pelo controlo preventivo dos diplomas que lhe compete promulgar), bem como do poder de demitir directamente o Governo, independentemente de qualquer censura parlamentar - o que é um poder "anormal" num sistema de tipo parlamentar como o nosso -, quanto estiver em causa o "regular funcionamento das instituições". Nessa linha entra também o poder presidencial de declarar o estado de excepção constitucional (estado de emergência e estado de sítio), sob proposta do Governo e ratificação parlamentar.

Ora a principal dificuldade da figura do "guardião da Constituição" ou de Presidente-garante-das-instituições está na questão de saber quem guarda o guarda, ou seja, como é que se assegura que o Presidente não é, ele mesmo, um factor disruptor do sistema constitucional. No sistema de Weimar, a solução desta dificuldade encontrava-se na possibilidade de destituição do Presidente por voto popular, uma modalidade de revogação de mandatos electivos (recall), segundo a lógica da "democracia semidirecta", de que o mesmo povo que elege e confere mandatos electivos também pode "deseleger" e retirar os mandatos atribuídos.
Contudo, na falta ou perante a ineficácia de tal, qual é a salvaguarda contra um Presidente que seja um problema em vez de ser a solução, um desestabilizador em vez de ser um moderador, um incendiário em vez de ser um bombeiro? É evidente que a única solução é de carácter preventivo, não elegendo ninguém que à partida não ofereça garantias de maturidade, sensatez, fidelidade constitucional, adequação ao perfil constitucional do Presidente. Porque, depois de eleito, nada mais há a fazer do que confiar que tudo corra bem no quinquénio seguinte. O requisito constitucional da idade mínima de 35 anos (não é por caso que a Constituição não estabelece limite de idade máxima...) só garante, quando muito, a maturidade intelectual e alguma experiência de vida; mas não assegura nenhum dos demais requisitos da função. Esses ficam para a avisada apreciação e decisão dos cidadãos eleitores.

É por isso que a figura do Presidente assenta essencialmente na confiança que o eleito possa inspirar quanto ao respeito pelas normas e pelos princípios que regem a função presidencial, onde não cabe de modo algum a figura do "Presidente-treinador". Do que se precisa em Belém é de um Presidente-garante e não de um Presidente-governante.

* Membro da comissão política da candidatura de Mário Soares

JL disse...

Venho agradecer a visita e os vostos de Ano feliz, que retribuo, que deixou lá no "O Observatório".
Deixo-lhe o desafio de regressar que eu farei o mesmo: voltarei cá mais vezes!

sotavento disse...

Gostei de relembrar!... :)
(Agradeço, ainda, a visita.)

Elise disse...

grata pelos votos que me fez.

esperemos que este ano seja pleno em mudanças positivas neste nosso cantinho

abraço

antonior disse...

Retribuo votos de um excelente 2006, cheio de Luz!
Pelo menos tanta, como as nuvens deixarem passar!

Abraço

segurademim disse...

Retribuo os votos formulados para 2006!!!
(agora diga lá se o post é todo para ler???)

;)

Unknown disse...

Há artigos (prefiro chamar-lhes assim!) mais longos e descritivos, outros curtos e informativos e há aqueles de meio termo, opinativos, que lançam pistas ou ajudam a descobrir caminhos e percursos na rede das redes...

Depois, cada um de vós, faz a sua opção de ler até ao fim ou de apanhar as pontas depois de uma leitura em diagonal...

Grato pela vossa visita!!!