sexta-feira, fevereiro 22, 2008

O apelo da SEDES


O mal-estar e a degradação da confiança, a espiral descendente em que o regime parece ter mergulhado, têm como consequência inevitável o seu bloqueamento. E se essa espiral descendente continuar, emergirá, mais cedo ou mais tarde, uma crise social de contornos difíceis de prever!

A sociedade civil pode e deve participar no desbloqueamento da eficácia do regime – para o que será necessário que este se lhe abra mais do que tem feito até aqui –, mas ele só pode partir dos seus dois pólos de poder: os partidos, com a sua emanação fundamental que é o Parlamento, e o Presidente da República.

As últimas eleições para a Câmara de Lisboa mostraram a existência de uma significativa dissociação entre os eleitores e os partidos. E uma sondagem recente deu conta de que os políticos – grupo a que se associa quase por metonímia “os partidos” – são a classe em que os portugueses menos confiam.

Este estado de coisas deve preocupar todos aqueles que se empenham verdadeiramente na coisa pública e que não podem continuar indiferentes perante a crescente dissociação entre o conceito de “res pública” e o de intervenção política!

A regeneração é necessária e tem de começar nos próprios partidos políticos, fulcro de um regime democrático representativo. Abrir-se à sociedade, promover princípios éticos de decência na vida política e na sociedade em geral, desenvolver processos de selecção que permitam atrair competências e afastar oportunismos, são parte essencial da necessária regeneração.

Os partidos estão na base da formação das políticas públicas que determinam a organização da sociedade portuguesa. Na Assembleia ou no Governo exercem um mandato ratificado pelos cidadãos, e têm a obrigação de prestar contas de forma permanente sobre o modo como o exercem.

Em geral o Estado, a esfera formal onde se forma a decisão e se gerem os negócios do país, tem de abrir urgentemente canais para escutar a sociedade civil e os cidadãos em geral. Deve fazê-lo de forma clara, transparente e, sobretudo, escrutinável. Os portugueses têm de poder entender as razões que presidem à formação das políticas públicas que lhes dizem respeito.

A
SEDES está naturalmente disponível para alimentar esses canais e frequentar as esferas de reflexão e diálogo que forem efectiva e produtivamente activadas.

2 comentários:

Anónimo disse...

O mal-estar do país e os erros dos políticos

por José Gomes Ferreira (Director Executivo Multimédia-Online), in SIC.pt

A SEDES, uma das associações cívicas mais antigas do país, divulgou um relatório que diz que Portugal está à beira de uma crise social de contornos difíceis de prever. Diz também que há falta de confiança na classe política e peso excessivo do Estado. A reacção esperada do Governo é que a SEDES exagerou. A reacção da maior parte dos portugueses é que, de facto, o mal-estar cresce e a SEDES pôs o dedo na ferida.

Por um lado, tornámo-nos cada vez mais exigentes. Por outro lado, há de facto um divórcio cada vez maior entre o país real e os centros de decisão.

Os sinais de mal-estar não vêm só, nem principalmente, das greves e manifestações. Essas são feitas, em grande parte, por quem beneficia de situações de privilégio que os sucessivos governos não quiseram acabar. Felizmente que este Governo está a resolver algumas dessas situações.

Os sinais de mal-estar mais profundo vêm dos protestos de aldeias do Portugal interior, quando se recusam a ir votar e se tornam de repente notícia na grande comunicação de massas. Em regra, ouvem-se os gritos mas não se explicam as razões, que são simples.
Há coisas que os decisores de Lisboa não sabem - ou preferem ignorar.

Qualquer família que viva fora da cidade com um magro rendimento, se quiser fazer uma pequena instalação para criar alguns animais em economia doméstica e cair no erro de pedir autorização à Administração Pública, nunca a poderá construir porque a Câmara Municipal e os inúmeros ministérios envolvidos vão inventar mil e um argumentos para recusar. Em regra, faz-se clandestinamente e espera-se que os fiscais não reparem. Ou paga-se ao fiscal.

Mas a dignidade e o sentido de cidadania de muitos portugueses não lhes permite corromper ninguém.

Muitos pequenos e médios negócios pelo país fora, pequenas indústrias, comércios, unidades hoteleiras e de restauração não se instalam porque os licenciamentos demoram sete, oito, dez anos… ou nunca chegam. As desculpas chegam ao absurdo de se dizer que o processo está perdido… Quando se sabe que as pequenas e médias empresas dão emprego a mais de 80 por cento da população activa.

O país foi todo dividido em vastas zonas de reserva ecológica ou florestal, onde não se pode construir uma casa, mas onde o Governo não aplica nem ajuda os proprietários a aplicar dinheiro em investimentos ou na manutenção.

Mais grave, o mesmo Estado, que obriga os proprietários a limpar as matas, produziu legislação que proíbe os proprietários de cortar coberto florestal. Os casos de proprietários multados por fazerem limpezas em zonas protegidas são cada vez mais. O mesmo Estado obriga a limpar mas não permite deduzir nem um cêntimo de despesa ao IRS de quem tem rendimentos de outra natureza e não vive da floresta mas comprou ou herdou algumas parcelas (a maior parte dos casos em Portugal).

O que os políticos nos gabinetes de Lisboa não sabem, ou fingem não saber, é que a floresta só se protege se for habitada e os donos puderem construir habitações ou estruturas de apoio, à volta das quais surgirão zonas agrícolas ou ajardinadas, de corta-fogo natural.

O resultado é que as largas áreas de floresta desabitada ardem impiedosamente e o Estado gasta rios de dinheiro a combater o que podia ser evitado. Não é à toa que uma sondagem recente de âmbito nacional colocava o receio dos incêndios à frente da insegurança entre as preocupações dos portugueses.

A classe política não percebeu, porque vive nas cidades e preocupa-se muito mais com o risco de assalto dos filhos à entrada do colégio, que é um risco bem real e deve ser atenuado, mas não é o único.

Em meados de 2006 foi publicada uma lei que obriga todas as construções novas em espaço agro-florestal a ter pelo menos 50 metros de distância de cada estrema, o que proíbe a edificação em qualquer terreno com menos de um hectare. Ora a estrutura média da propriedade no Centro e Norte do país é menor que um hectare.

O que se fez nas últimas décadas foi proibir a ocupação humana dos solos, encerrando as aldeias em redutos mínimos de urbanização que, naturalmente por serem escassos, fazem disparar os preços dos terrenos disponíveis.

O que se está a fazer em larga escala é empurrar os naturais das terras de Portugal para as cidades, onde os construtores e as autarquias se uniram numa "frente de betão" para construir prédios e arrecadar impostos sobre o imobiliário. Agora que têm centenas de milhar de apartamentos vazios, os impedimentos a quem ficou nas aldeias e quer melhorar as suas condições de vida são cada vez maiores…

Mas nas cidades portuguesas já não há emprego.

Por isso os portugueses emigram. De novo. É o escape nacional para o mal-estar.

O escape que permite ao Dr. Vitalino Canas dizer que a SEDES está a exagerar… (porque há sempre uma razão para os que ficam em Portugal não fazerem o mesmo…)

Anónimo disse...

A SEDES e o País

por FILIPE LUÍS, in Visão.pt, 2007.05.03

Portugal entrou no século XXI muito mais bem preparado do que no século XX. Em 1900, já não havia analfabetos na Finlândia – mas em 2008 já não há nenhum jovem português com menos de 20 anos que não saiba navegar na Internet

Imagine-se um país europeu atrasado e pobre, onde é considerado normal crianças e adultos andarem descalços. Onde a mortalidade infantil é 10 vezes superior à média europeia e a taxa de analfabetismo de 30 por cento, onde o pequeno-almoço de muitas das suas crianças, especialmente nas zonas rurais, inclui uma dieta à base de vinho. Onde a violência doméstica é aceite e onde, entre marido e mulher, nem a polícia mete a colher. Um país deselectrificado num quarto do seu território e onde apenas metade da população tem acesso a água canalizada e rede de esgotos. Um país sem vias de comunicação dignas desse nome, a perder os seus melhores filhos numa guerra colonial e para a emigração. Um país onde ninguém viaja, sem acesso a informação livre, sem acesso a produtos de consumo variados e onde as tendências e as modas chegam com décadas de atraso. Um país sem liberdade de expressão, nem de associação, nem de manifestação, nem de greve. Um país divorciado da modernidade, cultural e técnica, de agricultura feudal, cheio de carroças pelas suas estradas poeirentas, onde a mendicidade é uma forma de vida. Onde os seus melhores artistas estão proibidos, reprimidos, cercados ou presos, asfixiado por uma moralidade hipócrita, e onde a bruxa é a única alternativa ao médico que não existe.

Visitemos esse mesmo país 30 ou 40 anos mais tarde. Um país cruzado por autoestradas modernas, com infra-estruturas decentes, com serviços de saúde que funcionam e instituições permanentemente escrutinadas por uma imprensa livre e uma opinião pública emergente. Onde o equilíbrio de poderes previne abusos. Pobre, ainda, porque parco em recursos naturais, mas incomparavelmente mais rico do que antes, com um nível de vida a anos-luz da indigência do passado. Com um parque automóvel moderno, esgotos e água canalizada em praticamente 100% do território e com os populosos bairros de barracas de antigamente praticamente erradicados. Substituídos por guettos, nalguns casos, cheio de desequilíbrios entre um interior desertificado e um litoral caoticamente povoado – mas onde já não se morre de fome ou de doença e onde muitas das assimetrias aparecem como preço a pagar pelo desenvolvimento súbito e descontrolado. Com uma escolaridade obrigatória mínima e com indicadores sociais próximos da média europeia e esperança de vida equivalente. Com os aviões cheios dos seus nacionais em viagens de férias para os melhores destinos de praia ou neve. Com os mesmos contrastes de antes, mas onde a pobreza e a miséria nada tem já a ver com o terceiro-mundismo de antigamente. Um país que consome, almoça fora, diverte-se à noite e com os parques de estacionamento das universidades pejados de carros, o segundo ou terceiro carro da família. Mal ou bem, um pais universalmente escolarizado, com quadros jovens qualificados, a sair das universidades, talvez mais incultos do que antes, sem saberem o nome do primeiro rei de Portugal ou do último Presidente da República do Estado Novo, sem nunca terem lido um livro e a dar erros de ortografia, mas profundamente mais especializados e preparados para o mercado de emprego, sensíveis às novas tecnologias, e conhecedores dos nomes dos vencedores dos Óscares dos últimos dez anos – a referência de conhecimentos, do que interessa ou não interessa saber, evolui... Um país sem problemas de separatismo, sem conflitos sociais graves nem diferenças étnicas, com uma das mais baixas taxas de criminalidade do Continente. Um país onde se protesta, se vota, se discute, se discute até de mais. Com figuras culturais de referência mundial, protagonistas e êxitos desportivos muito superiores a países de dimensão semelhante e quadros políticos nos mais altos cargos das instituições internacionais. Capaz de organizar mega-eventos mundiais muito melhor do que outros e com meios humanos e físicos para isso. Um país com excelente clima e gastronomia, procurado por milhões de turistas e segunda pátria de novas gerações de imigrantes.

Pois é neste «segundo» país que um surge um documento de uma elite que diz existir um «mal-estar» na sociedade, capaz de originar «uma crise social de contornos difíceis de prever». Mas a redundância vaga e não fundamentada em exemplos prossegue: há «sinais da degradação da qualidade cívica» - mas estamos a falar de um país onde a intervenção cívica não existia até há 30 anos!. «Sente-se hoje um mal-estar difuso que alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional» - isto um país que, sempre a viver na miséria, resistiu, quase 900 anos, a todas as tentativas, internas e externas, de deterioração da sua coesão nacional!.

A SEDES parece não conhecer a História, nem ver para além da espuma dos dias. E os portugueses não têm memória nem fazem comparações com o que tão recentemente viveram e eram. O diagnóstico da SEDES não está errado, mas não é pedagógico nem inovador. Limita-se a analisar conjunturas, mas vê a realidade da «caverna de Platão». Analisa o momento, dando voz a sensações gerais, sem reflectir comparativamente os momentos históricos. Ora, a falta de memória, essa sim, é a única verdadeira ameaça àquilo a que se chama «coesão nacional». Portugal entrou no século XXI muito mais bem preparado do que no sécul XX. Em 1900, já não havia analfabetos na Finlândia – mas em 2008 já não há nenhum jovem português com menos de 20 anos que não saiba navegar na Internet. Em 30 anos, Portugal fez um percurso de aproximação à Europa que outros demoraram séculos a fazer. Continua na cauda – mas arrancou com dez voltas de atraso. Tem ao lado um desleal termo de comparação: a Espanha. Espanha que é grande de mais para nós, e mesmo assim não nos assimilou, e que teve uma ditadura que – ao contrário da portuguesa – a desenvolveu economicamente. Que não teve guerra colonial (embora tenha problemas graves de separatismo e terrorismo).

O mal do país é discutir o acessório em vez de escalpelizar o essencial. É um país onde os problemas da Educação parecem resumir-se às reivindicações dos professores, que, por muito legítimas, apenas lhes interessam a eles – quando o que nos interessa a todos é a forma como a nova vaga de alunos está a ser preparada. Onde os problemas da Saúde se resumem ao fecho de urgências, quando o que interessa saber é se cientificamente, os nossos hospitais oferecem ou não o mesmo nível de prestação de cuidados que os seus congéneres europeus. Onde os problemas da Justiça parecem resumir-se aos seus atrasos – quando a questão está na facilidade ou dificuldade de acesso por parte dos cidadãos. Onde o problema do funcionamento da sociedade se resume à produção de leis (quase sempre perfeitíssimas!) – quando o fundamental é a ajuizar da exequibilidade da sua aplicação (e o caso ASAE é paradigmático: a legislação era óptima mas quando alguém a aplica cai o Carmo e a Trindade...)

O problema do país não está só no desemprego, mas na chantagem psicológica permanente nos locais de trabalho. Não está na pequena criminalidade da rua, mas na violência doméstica escondida e transversal a todas as classes sociais, que mantém mulheres reféns e torturadas em tantos lares nacionais com total desrespeito das autoridades pelos direitos humanos. O problema não está na avaliação de professores – mas na exigência que se deve aplicar aos alunos e às famílias. O problema não está na decisão política ou na incompetência dos eleitos, nem sequer na sua cupidez – mas na indigência da investigação policial sobre a corrupção e na falta de vontade das elites em intervir civicamente. O problema não está na estrada com buracos ou na necessidade de mais uma piscina municipal que ficará às moscas – mas na degradação do património histórico, que devia ser uma prioridade para qualquer governo civilizado, porque os homens passam, as obras ficam. O problema não está no combate aos incêndios – mas na sua prevenção. O problema não está entre escolher entre a Ota e Alcochete – mas no atraso de décadas de um aeroporto absolutamente necessário. O problema não está na invasão espanhola mas na desconfiança, sobretudo sindical, mas também burocrática, relativamente ao investimento estrangeiro que nos daria emprego, qualificação e largueza de vistas. O problema não está na coesão nacional mas nos complexos nacionais.

O mal-estar de que, redundantemente, fala a SEDES, cujos responsáveis ocupam ou ocuparam os mais altos cargos de liderança no País, existe – mas o derrotista documento, que vem baralhar em vez de apontar caminhos, não contribui para o erradicar.