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terça-feira, abril 25, 2006
Cavaco surpreende... ou talvez não?!
Defraudando as expectativas dos articulistas e os desejos da oposição, o Presidente da República escolheu a temática da justiça social para o seu primeiro discurso do 25 de Abril...
Na sessão solene comemorativa do 32º aniversário da Revolução dos Cravos, Cavaco Silva foi o primeiro Presidente a discursar sem cravo na lapela e centrou a sua intervenção no combate às desigualdades sociais, propondo um compromisso cívico para cumprir essa tarefa e reiterou o desafio de melhorar a qualidade e credibilidade do sistema político.
Quem esperava um puxão de orelhas aos titulares dos cargos públicos, admirou-se com a opção de Cavaco Silva e com o apoio claríssimo às acções do Governo no apoio aos idosos mais desfavorecidos e na melhoria das políticas de inclusão social. Parece que temos Presidente!
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8 comentários:
Cavaco quer compromisso para a inclusão social
In Diário de Notícias, 26-04-2006
Autores: Francisco Almeida Leite e Rodrigo Cabrita
Cavaco Silva surpreendeu ontem todos aqueles que esperavam que no seu primeiro discurso comemorativo do 25 de Abril como Presidente da República abordasse a temática das finanças públicas ou o recente episódio da falta de quórum no Parlamento. O PR optou, antes, por um discurso marcadamente social, onde propôs um compromisso cívico para a inclusão social. E apelou a consensos: "É possível identificar os problemas mais graves e substituir o eterno combate ideológico por uma ordenação de prioridades, metas e acções." O primeiro passo, sublinhou, poderá ser dado já na elaboração do próximo Plano de Acção Nacional para a Inclusão.
O Presidente justificou a escolha do tema pelo facto de, 32 anos após o 25 de Abril, ser necessário confrontar a sociedade "com os sonhos que marcaram aqueles dias". O País que temos hoje, afirmou Cavaco, está "fortemente marcado pelo dualismo do seu desenvolvimento". E, apesar de ser "inegável o progresso registado em alguns sectores de actividade", "essas experiências de vanguarda não conseguem impregnar todo o tecido económico e social, coexistindo nichos de modernidade com expressões de indisfarçável arcaísmo social e cultural".
Segundo Cavaco Silva, o quadro estende-se ao mapa do País: "Profundas disparidades revelam-se na leitura do território. É cada vez maior o fosso entre as regiões marcadas por uma ruralidade periférica e as regiões mais urbanizadas." Um retrato de "um mau viver resignado, sem qualidade e sem horizontes".
Portugal a duas velocidades
Depois de abordar a crise do mundo rural e o "adormecimento" das vilas e aldeias do interior, sublinhando que ninguém se iluda "pela presença deste ou daquele equipamento social", Cavaco pôs o dedo na ferida. Para além de haver uma "dupla exclusão do envelhecimento e da pobreza" no interior, "a mais marcante das disparidades que emergem deste Portugal a duas velocidades é a que resulta das desigualdades sociais".
Aludindo à comemoração de Abril, Cavaco Silva afirmou que "o sonho de um País livre e democrático é indissociável da ambição de uma sociedade mais desenvolvida e com mais justiça social". Até porque Portugal é, no quadro da União Europeia, "o que apresenta maior desigualdade de distribuição de rendimentos. E é também aquele em que as formas de pobreza são mais persistentes".
As primeiras palmas, do PSD e do CDS, vieram quando Cavaco Silva garantiu que o esforço que o Estado tem feito para atenuar este quadro depressivo "tem de ser continuado", mas: "Não é moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a quem viveu uma vida inteira de privação."
Num discurso que acabaria por agradar a todos os sectores representados na Assembleia da República, Cavaco disse que é preciso legar às novas gerações "um País mais livre, mas também uma sociedade mais justa". Frase que recolheu aplausos da esquerda à direita, assim como quando falou das crianças como o "elo mais fraco dessa cadeia social que alimenta a exclusão."
Comportamento dos eleitos
A única vez em que Cavaco se aproximou, indirectamente, da polémica da falta de quórum nas votações do Parlamento há pouco mais de uma semana foi ao afirmar: "Tive a oportunidade, aquando da minha tomada de posse, de sublinhar a responsabilidade que impende sobre a classe política, nesse esforço de melhorar a nossa democracia e de reforçar o prestígio das instituições." De resto, sublinhou não querer alongar-se sobre "o que é exigível do comportamento dos eleitos e demais agentes políticos".
Depois de cantar Grândola Vila Morena na campanha eleitoral, Cavaco Silva fez um discurso socialista e simpático para o Governo. Nem sequer recusou a herança do sampaísmo: lançou uma proposta totalmente irrelevante. A única diferença foi mesmo o cravo. Evocou mas não usou. Para a direita não reclamar muito.
Nota: o João já tinha escrito um editorial no DN com o mesmo título. Obviamente o original é mais valioso que a cópia.
O porquê e o como
por Ruben de Carvalho
in DN, 2006.06.27
O discurso de Cavaco Silva no Parlamento, na sessão comemorativa do 25 de Abril, coloca duas questões cujo laconismo violentamente contrasta com a necessária extensão das respostas. Cavaco disse, no essencial, 32 anos decorridos sobre Abril de 74, ter-se conseguido uma sociedade mais livre - mas não uma sociedade mais justa; segundo, que é necessário lutar para resolver tal situação.
A primeira pergunta é - porquê? Como é que se chegou a esta situação?
A segunda é - como? Como é que se resolve esta situação?
Convém dizer, antes de tudo o mais, que é uma falácia própria de quem tem do 25 de Abril a peculiar visão do actual Presidente da República afirmar que Portugal não é hoje uma sociedade mais justa do que no 24 de Abril salazarista. O facto de se não ter atingido o que desejaríamos e o que teria sido possível não pode fazer esquecer que não foram apenas a liberdade e a democracia que se conquistaram há três décadas. O que não conseguimos ou o que entretanto foi destruído não pode fazer esquecer o que se conquistou - e que urge defender.
Mas, na realidade, o que é notável é que um político que governou Portugal durante um terço dos anos decorridos desde a madrugada dos cravos, que foi dirigente do partido que mais tempo ocupou na governação deste período, nada tenha a dizer aos portugueses sobre as razões por que o País enfrenta hoje os problemas que enfrenta! Não era preciso subir à tribuna de São Bento para escutar o que se ouve quotidianamente nas ruas.
Quanto ao porquê não houve, portanto, qualquer resposta.
Relativamente ao como talvez já não seja exacto dizer que o silêncio foi igual.
O diagnóstico feito por Cavaco continha já elementos significativos: falou de exclusão, de violência doméstica, de desertificação do interior - mas sobre o desemprego, por exemplo, quedou-se no mais tonitruante silêncio. E não deixa de ser estentoricamente significativo que, no esquelético campo das "soluções", avulte, antes do mais, o aviso de que os portugueses não deverão contar com o Estado - antes com piedosos entendimentos a que Belém apela.
Quando os políticos apelam à caridade, os povos sabem por experiência que não é dali que virá boa política.
Surpresa?
por António Vitorino
in DN, 2006.04.28
O discurso do Presidente da República no dia 25 de Abril surpreendeu o mundo político e a generalidade dos comentadores ao centrar-se na temática da exclusão e das desigualdades sociais! Esta escolha tem uma dimensão táctica para a definição do posicionamento do novo Presidente da República no sistema político mas parece-me mais interessante ponderar sobre o seu significado de fundo.
É verdade que as expectativas sociais criadas há trinta anos não foram integralmente concretizadas. Em parte porque eram excessivas, em parte porque as prioridades políticas não corresponderam a tais expectativas, em parte porque o mundo mudou tão radicalmente que o teste da realidade sempre se acabaria por impor à retórica, por mais generosa e bem-intencionada que esta fosse.
Clarifiquemos, pois, o próprio ponto de partida: o regime democrático, nestes trinta anos, produziu resultados globalmente positivos na luta contra a exclusão social, o analfabetismo, a mortalidade infantil e a pobreza. Fê-lo em nome de um paradigma de Estado social que foi vertido na nossa Constituição e que havia começado a ser construído ainda no regime autoritário. A dimensão de assistência social a cargo do Estado foi convivendo, ao longo destes trinta anos, com a reconstrução de um sector social que havia sido profundamente abalado com os primeiros tempos da revolução (designadamente as Misericórdias e outras instituições particulares de solidariedade social). Ao mesmo tempo foi-se edificando um Estado social assente na protecção dos riscos sociais (saúde, desemprego, reforma e aposentação), ocupando o Estado um lugar dominante e o sector privado um protagonismo limitado em parte por insuficiência do enquadramento regulatório em parte por timidez da própria iniciativa privada.
A democracia instaurada pelo 25 de Abril pode ser acusada de muitas coisas mas decerto não pode ser acusada de insensibilidade social.
O paradoxo é que o "roteiro de construção do Estado social", ínsito no programa aspiracional do 25 de Abril, começou a ser desenvolvido no momento em que entraram em crise as bases de acumulação económica que, na década de sessenta, haviam viabilizado os congéneres modelos sociais europeus (desde o choque petrolífero de 1973 até à queda do Muro de Berlim em 1989).
A adesão às Comunidades Europeias e ao euro criou um ambiente e um quadro de referência que reforçou a convicção de que este Estado social poderia edificar-se com base numa lógica de proibição do retrocesso, de progressão geométrica das prestações e de sustentabilidade financeira garantida pelo lugar central nele desempenhado pelo próprio Estado, sobretudo através do sistema fiscal e enquanto prestador directo.
Fruto do enquadramento internacional e das específicas opções tomadas pelo poder político nacional, este processo desenvolveu-se, contudo, de forma assimétrica em termos de grupos sociais e até em termos regionais e hoje confronta-se com as lacunas e insuficiências da sua efectivação, inclusive na sua dimensão de rede universal de protecção, bem como com os obstáculos e as dificuldades inerentes à sua sustentabilidade, a prazo, em virtude das bases de funcionamento da própria economia portuguesa.
As opções (difíceis) com que hoje estamos confrontados não podem nem devem servir para julgar o 25 de Abril e a "agenda social" que na sua senda foi inserida na Constituição portuguesa .
O dilema do Estado social hoje, em Portugal, resulta de aspectos específicos nossos e de partilharmos com os demais países do espaço europeu problemas de fundo sobre a sua sustentabilidade. A evolução demográfica, o crescimento das desigualdades, as restrições impostas às finanças públicas, a perda de competitividade das economias europeias são problemas comuns, que no caso português se diferenciam pelo seu grau e acuidade.
Mas, entre nós, ao mesmo tempo, convivem com estes desafios de sustentabilidade do Estado social problemas específicos de incompletude do Estado social nos termos clássicos que muitos dos países europeus ultrapassaram há várias décadas e que em Portugal ainda subsistem com preocupante expressão: elevada taxa de insucesso escolar, baixo valor de pensões que cobrem uma larga margem da população - sobretudo a mais idosa -, índices de pobreza profunda.
Este paradoxo explica as razões pelas quais a luta contra a exclusão social é, desde 2000, um dos pilares fundamentais da denominada "Agenda de Lisboa" da União Europeia, nela se compreendendo causas de exclusão ditas "clássicas" tanto como as novas causas de exclusão, ligadas à natureza do processo de globalização, que alarga o fosso das desigualdades e atinge cada vez mais camadas importantes das classes médias colocadas em risco pelo espectro do desemprego e pela diminuição efectiva das expectativas de ascensão progressiva na escala social.
O Presidente da República deu um importante contributo para um debate inadiável e nesse sentido ainda bem que nos surpreendeu!
Lamento e protesto, porque, apesar do pertinente discurso que produziu, nas cerimónias do 25 de Abril, na Assembleia da República, saiu completamente fora do guião que lhe traçou o Expresso, há pouco mais de 15 dias. Certamente que os seus serviços não foram eficientes na transmissão da informação. Eu, se fosse do Expresso, teria ficado muito magoado com Vossa Excelência. Nem uma referência sequer aos deputados e à fuga em massa para férias de Páscoa, depois da assinatura da folha de presenças. O Sr. Presidente podia, ao menos ter dado um jeitinho, para que a verdade da informação se materializasse, em dia de comemoração de Abril.
25 de Abril: as surpresas de Cavaco
por Vicente Jorge Silva
in DN, 2006.04.26
Há já muito tempo que o discurso do Presidente da República se tornou o único verdadeiro acontecimento das comemorações do 25 de Abril. Apesar das propostas para que se encontrassem formas mais criativas e menos retóricas de assinalar a data do que a cerimónia oficial no Parlamento, os desfiles militares ou a velha marcha na Avenida da Liberdade, nunca se saiu do formato clássico, anacrónico e pesadamente nostálgico dentro do qual se lembra essa revolução dos cravos que, há pouco mais de trinta anos, incendiou as imaginações e funcionou como marco de tantos sobressaltos libertadores.
As tentativas para fazer do 25 de Abril uma grande festa popular acabaram por resultar inglórias, melancólicas, ou, até, quase patéticas. A transmissão do seu testemunho entre gerações - as que viveram o acontecimento, as que dele apenas guardam uma recordação de infância ou as que depois dele nasceram - não aconteceu de facto. Por mais inspirados que sejam os apelos à memória, o 25 de Abril permanece hoje numa espécie de limbo, refém das convulsões pós-revolucionárias, das divisões que se introduziram na sociedade portuguesa e dos sonhos generosos que nele foram investidos há três décadas mas não sobreviveram, em larga medida, à corrosão do tempo e das utopias.
Desde Ramalho Eanes que as mensagens presidenciais no 25 de Abril vêm sendo aguardadas como momentos de suspense, explorados intensamente pelos media, nos quais é suposto o Chefe do Estado enviar recados ao Governo ou dar-lhe até alguns oportunos puxões de orelhas. Com os presidentes seguintes - Mário Soares e Jorge Sampaio - o figurino dessas expectativas não se alterou substancialmente, apesar das diferenças dos mandatos, das personalidades, dos estilos e das conjunturas. Criou-se assim a convicção de que a recente falta de quórum parlamentar numa votação pré--pascal e os relatórios pessimistas sobre a situação económica do País forneceriam a Cavaco Silva temas adequados ao seu primeiro discurso do 25 de Abril. Um jornal, o Expresso, no afã de antecipar o próprio acontecimento, chegou mesmo a noticiar que o Presidente decidira dar um raspanete aos deputados.
Ignoro qual terá sido o propósito inicial de Cavaco e se, face à indiscrição do Expresso, optou por um desmentido cabal (a quantos desmentidos sucessivos sobreviverá o semanário mais influente do País?). Ignoro também se a outra óbvia previsibilidade de agenda - o pessimismo económico - não terá estimulado o Presidente a preferir um novo efeito de surpresa. O que não parecia estar, de todo, nas previsões foram o tema e o teor da mensagem de Cavaco Silva. Uma mensagem que teve ainda o condão de contrastar vivamente com a confrangedora banalidade dos discursos que ontem fizeram os representantes partidários, insistindo na retórica estafada de (quase) sempre, e dos quais apenas sobressaiu, pela qualidade e pelo sentimento da evocação histórica, o do presidente do Parlamento.
Cavaco fez um discurso contra-corrente - contra a própria corrente em que nos habituámos a situá-lo, contra a corrente onde identificamos muitas das personalidades (e interesses) que o apoiaram, e, finalmente, contra a corrente da agenda política e mediática. Preferiu focar as suas preocupações num tema central, ao contrário das viagens circundantes que costumavam ser os discursos presidenciais. E elegeu um tema a que não era suposto estar tão atento e sensível - esse tema "oculto" ou sistematicamente obscurecido pelo ruído ambiente que é o Portugal silencioso, remetido para as margens da exclusão social e da desertificação territorial, o Portugal desprovido de defesas ou representação política e corporativa, o Portugal desprezado e "improdutivo", "deixado por conta" nos critérios economicistas e tecnocráticos da competitividade e da rentabilidade, mas sem o qual só existimos como uma entidade amputada de uma parte essencial de si própria.
Discurso de "esquerda", de compaixão, de solidariedade, de alerta - que importam as definições? O que importa é a gravidade emprestada pelo Presidente ao compromisso cívico concreto que propôs aos portugueses e a que teremos de responder por acção ou omissão (a começar pelos que nele votaram nas últimas eleições). Não votei em Cavaco Silva, mas não me lembro de um discurso presidencial dos últimos dez a quinze anos que tivesse posto assim o dedo na maior ferida portuguesa. Só por isso - e não é dizer pouco - fizeram sentido estes 32 anos do 25 de Abril.
Um discurso “significante"
José Miguel Júdice (ex-bastonário da Ordem dos Advogados)
in Público, 2006-04-28
Odiscurso presidencial em 25 de Abril de cada ano é sempre aguardado com expectativa. O primeiro discurso de cada Presidente é olhado com expectativa adicional, por razões facilmente compreensíveis. O sóbrio estilo cavaquista e a natural contenção que a coabitação pressupõe não permitiram, porém, as manchetes assassinas e as ribombantes aberturas de telejornais, de que se vai fazendo o pão nosso de cada dia.
Daí a considerar-se a intervenção "insignificante" foi um passo, fácil de dar. Mas essa é uma solução de facilidade que o discurso não merece, apesar de nem sempre ter um recorte formal excelente, para não dizer mais. Até porque tem um importante significado político e, pelo menos nessa medida, é muito "significante".
O discurso é expressão clara de uma coabitação que actualiza o conceito de cooperação estratégica. O exemplo mais claro disso é a referência de modo explícito ao PNAI (Plano Nacional de Acção para a Inclusão), que foi revelado no dia seguinte pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 40/2006. Ou seja, o Presidente da República usou esta oportunidade para ampliar o significado de uma medida governamental que ainda não fora publicada, para lhe dar uma visibilidade que nunca teria sem tal referência; no fundo, optou nesta sua primeira intervenção de alto coturno político por se "colar" a uma estratégia governamental. A felicidade estampada na cara do primeiro-ministro e os aplausos da bancada socialista não enganam.
Mas - porque nestas coisas há sempre um (ou vários...) "mas" - o discurso não fica por aqui, e o seu "significado" é bem realçado se tivermos a paciência e o engenho necessários para ler a mencionada Resolução, apesar de estar escrita num "burocratês" dificilmente compreensível por quem não seja alto quadro da função pública. É que o PNAI ali anunciado é uma interminável lista de membros de infindáveis comissões, para fazerem diagnósticos, relatórios, reformulações, diligências, procedimentos, promoção de participação, monitorização, produção de indicadores, veiculação e outros palavrões quejandos com que se mascara a inexistência seja do que for que se possa apalpar ou ao menos vislumbrar. E, caso curioso, entre 32 entidades que vão nomear membros para as comissões, não há um - leram bem, não há um - que não seja oriundo do Governo e dos inúmeros apêndices com os governos se adornam.
Ora o discurso de Cavaco Silva subverte simbolicamente esta realidade, ao apelar para um "compromisso cívico" para a inclusão social, para uma mobilização da sociedade civil, que está totalmente ausente do burocrático texto governamental. De um modo aparentemente surpreendente, foi o "tecnocrata" Cavaco Silva quem deu conteúdo ideológico e político a um medida eurocrática, destinada a não passar das confidenciais páginas do Diário da República.
E, segundo "mas", esta colagem contém inevitavelmente um investimento para capital de queixa futura: ai do Governo se não for capaz de passar da lábia a favor da inclusão social para as medidas reais de inclusão.
Mas esta aposta no conceito do "compromisso cívico" tem outras virtualidades e nisso reside, em minha opinião, o que de mais relevante teve o discurso presidencial. A inconcebível situação de exclusão social dos menos favorecidos dos desfavorecidos é uma vergonha para Portugal e em especial para as elites e para os detentores das alavancas do poder económico. Nos últimos anos, tive inúmeras ocasiões de amargura perante as tragédias que me chegavam de pessoas que no bastonário dos advogados viam uma espécie de último recurso quando tudo falhava.
Com mágoa e raiva o digo: deve ser muito difícil encontrar no mundo mais desenvolvido elites mais egoístas, com menos sentido social, mais desinteressdas com as dores dos que são trucidados pela roda da vida e com o sofrimento dos seus concidadãos, do que as elites portuguesas. Com raras e honrosas excepções, os grandes patrimónios portugueses, as grandes empresas que têm lucros muito vultuosos, os tycoons que acumulam fortunas rápidas, nada fazem para acudir aos excluídos, não dão nada de seu para tentar minorar as dores dos danados da terra.
Por isso é politicamente cheio de "significado" este apelo a uma "mobilização geral, uma verdadeira campanha em prol da inclusão social". O apelo, e o que pressupõe, pode exprimir a base teórica e anunciar a dinâmica ideológica do quinquénio cavaquista. O que para muitos será considerado um paradoxo: o Presidente eleito por uma base de apoio mais à direita poderá fazer da inclusão social a razão de ser do seu magistério.
Mas este só é um paradoxo para quem não estuda História. Em épocas de profunda reestruturação económica, num momento histórico em que temos ainda os pobres das sociedades tradicionais, já os pobres das sociedades em transição acelerada e até os pobres das sociedades pós-industriais (como há 20 anos - sem que ninguém ligasse - tantas vezes escrevi), o puro instinto de sobrevivência (à falta de alguma virtude teologal) deverá levar os mais favorecidos a redistribuírem parte do que acumularam. Assim seja!
A conta
por Vasco Pulido Valente
in Público, 2006-04-28
Toda a gente teve opiniões sobre o discurso de Cavaco no "25 de Abril", do muito disparatado, ao trivial e ao espertalhão. Não me parece que fosse precisa tanta prosa: no fundo, Cavaco só podia dizer o que disse. Poucas semanas depois de eleito, não podia falar do sistema político e da sua presuntiva reforma ou, pura e simplesmente, passar uma descompostura aos deputados. Também não se podia pôr a divagar sobre política económica, sem ser logo interpretado como crítico ou apoiante do Governo. Fora uma pequena tirada sobre os males do mundo, francamente a despropósito, ficava o quê? Ficava a "justiça social". Como tema, as vantagens da "justiça social" são infinitas. Ninguém discute que não há. Ninguém discute que deve haver. E, desde que não se exceda uma vaga generalidade, o Governo e os partidos gostam de se preocupar com o próximo.
Obviamente, o dr. Cavaco ganhou o dia. O PS delirou, o PSD, embora contrariado, lá espremeu o entusiasmo que lhe competia e até Jerónimo de Sousa engoliu a diatribe do costume. Impecável. Só que o interessante no discurso é, no fundo, a sua nulidade. Cavaco já não acredita com certeza - se algum dia acreditou - em qualquer espécie de "mudança" para um futuro previsível. Sabe que as causas do atraso português vêm de muito, muito longe e não se eliminam com "austeridade financeira" e a clássica receita de um "liberalismo" de circunstância. É preciso esforço, espaço e tempo para "revolucionar" uma cultura. Pelo calendário eleitoral, dois mandatos, pelo menos, para se notar uma diferença, mesmo ligeira.
Por sorte Cavaco prometeu não intervir (quando intervir seria sempre frívolo) e garantiu ao Governo "cooperação estratégica", uma ambiguidade que lhe permite subscrever ou rejeitar o que o Governo for fazendo. A proposta de um "compromisso cívico" para o Plano Nacional de Acção para a Inclusão, por exemplo, conta a favor dele e não o liga a nada. Em contrapartida, o défice de 2005 caiu num poço de esquecimento, guardado talvez para uma quinta-feira em Belém. Cavaco não quer que lhe toquem: não se quer "sujar" com o fracasso ou com a polémica. O que daria resultado se o país não esperasse dele a salvação. Mas manifestamente espera. Quando perder a paciência com a "crise", a quem irá pedir contas? Boa propaganda, o imaginário "consenso" do "25 de Abril" não evita o inevitável. Tarde ou cedo, Cavaco receberá a conta que lhe compete. Não há eleições de graça.
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