As comemorações do 5 de Outubro podem representar um ultimato do Presidente da República ao governo de Santana Lopes, ainda que Jorge Sampaio tenha ontem explicado aos presentes que as “suas palavras são sempre de estímulo e não de ultimatos”, depois de ter sustentado que o País precisa de reformas estruturais urgentes perante uma crise generalizada que pode diminuir a “confiança dos portugueses no próprio regime republicano”.
Está tudo no Correio da Manhã ou no Público, onde já subscrevam que o Presidente da República está arrependido do cheque em branco que passou ao nóvel Presidente do PPD/PSD...
Como não é possível a ligação directa ao discurso no site da Presidência da República, fica aqui com os devidos destaques:
"Comemorar o dia da República é, naturalmente, evocar e actualizar os princípios que representam o seu espírito e constituem o seu património.
Entre eles, o princípio da igualdade é a pedra fundamental em que assentam os regimes políticos modernos, cuja legitimidade primeira resulta da vontade dos cidadãos expressa em eleições livres e regulares, por voto universal e secreto.
Daqui decorre que nada é mais importante do que a igualdade politica entre os cidadãos, que implica um conjunto de direitos e de deveres para com a comunidade, codificados na Lei Fundamental. Os cidadãos são iguais entre si em direitos e deveres, são todos iguais em face da lei e no acesso ao direito, são iguais na comunidade politica e perante o Estado.
Mas a igualdade não se esgota na sua dimensão politica. Nas sociedades abertas, todos os cidadãos devem ter igualdade de oportunidades, designadamente no acesso aos bens públicos, e devem ter assegurado o maior número possível de escolhas para a sua vida pessoal e profissional. Nesse mesmo sentido, a pluralismo e a diversidade, que são a marca característica de uma comunidade livre e dinâmica, devem ser acompanhadas por uma tendência para a redução das desigualdades económicas e sociais.
Essa tendência pode ser avaliada como um indicador relevante da qualidade do regime de democracia pluralista, no sentido em que esse regime não é só uma forma de legitimar as instituições politicas representativas, é também um projecto colectivo de todos os cidadãos para quem o bom governo é inseparável de uma vida melhor e mais digna para todos os membros da sociedade. A justiça distributiva é, não o esqueçamos, parte integrante da República moderna.
De facto, o princípio da fraternidade traduz as raízes mais profundas do espírito republicano. O próprio termo evoca um vinculo afectivo profundo e indestrutível, uma relação de familiaridade que une toda a comunidade, e que nos liga não apenas uns aos outros, nossos contemporâneos, mas também aos nossos antepassados e às próximas gerações.
A fraternidade é a continuidade e a solidariedade. Sem fraternidade, a linha de continuidade histórica que dá sentido à própria existência da comunidade nacional perde a sua densidade emocional, sem a qual não pode existir nem uma vontade, nem um desígnio colectivo dignos do empenho e, mesmo, do sacrifício de todos. Sem solidariedade, não pode existir uma tradução desses sentimentos profundos em vínculos duradouros.
Nas sociedades modernas, onde as divisões sociais, regionais e geracionais por vezes se acumulam, a solidariedade é o garante da coesão nacional. Nas sociedades abertas, onde as formas de diferenciação culturais, étnicas, religiosas ou de género por vezes se multiplicam, a solidariedade é indispensável para conter as tendências de fragmentação, os fenómenos de violência e os reflexos de intolerância.
O princípio da liberdade é o valor essencial da tradição republicana. Tudo começa com a liberdade do ser humano, com a sua autonomia e a necessidade de exprimir a sua vontade como parte integrante da comunidade politica. Tudo acaba na liberdade do ser humano, no sentido em que a própria finalidade da República é inseparável do individualismo democrático, da realização plena, completa e integral de cada um dos cidadãos no todo nacional. A liberdade une as mulheres e os homens livres para construirem um regime livre e defenderem as regras da liberdade. Este é um trabalho de todos os dias. Este é um trabalho incessante.
É preciso que sejam cada vez mais os homens e as mulheres que exercem plenamente os direitos e os deveres da liberdade, os homens e as mulheres que prezam a sua liberdade e a liberdade dos outros, sempre, e não apenas quando os seus direitos são directamente postos em causa.
Na crise de valores que marca o nosso tempo, nada é mais preocupante do que a indiferença dos cidadãos perante a liberdade, as regras da liberdade e o regime da liberdade.
Essa indiferença exprime-se, por exemplo, nos níveis elevados de abstenção eleitoral, que corroem a legitimidade das instituições republicanas. Essa indiferença exprime-se, por exemplo, na evasão fiscal, quando muitos dos que mais possuem se eximem a cumprir os seus deveres e negam a sua contribuição para o bem comum. Essa indiferença exprime-se, por exemplo, quando nada fazemos face à opressão e perante as perseguições, os atentados e os massacres, que tragicamente marcam a vida internacional.
Lutar contra a indiferença é afirmar os valores republicanos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Lutar contra a indiferença é defender o projecto cívico de uma sociedade nacional assente na cidadania, que é o outro nome da República. Da República de que celebramos o espírito, os princípios essenciais e a prática política quotidiana que os concretiza e valorize.
Tenho procurado fazer, ao longo das minhas intervenções, o diagnóstico sereno, rigoroso e atempado dos problemas, dos riscos e mesmo das crises que pesam sobre a evolução do nosso País.
Não raro, resposta típica aos diagnósticos de crise têm sido medidas avulsas, apressadas e conjunturais, sem nada resolver, que pioram a situação. Mais grave ainda, essas medidas serem frequentemente usadas como modos de não assumir ou mesmo ocultar as crises, prolongando-as e agravando-as.
É visível, todavia, que esse método está gasto e o recurso a ele desacreditado. Os portugueses querem ouvir a verdade, por mais dura que se afigure. Assim, já ninguém acredita que se possa continuar a esconder a crise económica. Todos assistimos também – e da pior maneira possível – à revelação pública da crise da justiça A crise politica, expressa na distância crescente entre os cidadãos e as instituições representativas, é patente nos actos eleitorais, visível nos inquéritos, sendo evidente para todos os que não perderam o contacto com a realidade.
Essas crises não são apenas crises persistentes, são crises que ameaçam tornar-se estruturais, e a cegueira e a passividade só servem para diminuir a confiança dos Portugueses no próprio regime republicano e na sua capacidade para governar o País e preparar o futuro. É, por isso, preciso encarar de frente as dificuldades.
É forçoso constatar, por exemplo, a permanência de obstáculos poderosos, que têm conseguido impedir sucessivos governos de cumprir os seus mandatos políticos, assentes em programas concretos de reformas, legitimados pelo sufrágio democrático.
Para procurar ultrapassar esses pesados condicionamentos, tenho insistido na necessidade de fortalecer o Estado, demasiado vulnerável face aos interesses burocráticos, corporativos e clientelares instalados. No mesmo sentido, tenho insistido na urgência de uma aliança entre o Estado democrático e as forças mais dinâmicas, mais empreendedoras e mais criativas da sociedade e da economia portuguesas, sem a qual não é possível vencer a inércia da crise.
Não me tenho cansado de dizer e de repetir o que penso sobre esta questão fulcral. Vou até mais longe: sinto que é preciso identificar com maior rigor os factores de resistência às reformas que todos reconhecem ser necessárias.
Com efeito, a nossa experiência, nas últimas décadas, tem demonstrado uma incapacidade persistente, nomeadamente por parte dos responsáveis políticos, em realizar, autónoma e controladamente, um programa de reformas.
Não se trata de voltar a identificar os bloqueios e as causas da crise. Esse diagnóstico está feito desde há muito e nem merece contestação séria entre os especialistas.
Não se trata de voltar a propor e a formular as respostas estratégicas e politicas - ontem, como hoje, as reformas prioritárias estão preparadas e o seu sentido essencial merece um razoável consenso entre os responsáveis políticos.
Trata-se de executar, de realizar, de impor as reformas que um número crescente reconhece como indispensáveis e urgentes, sob pena de regressarmos a um ciclo de declínio nacional.
A história serve como lição. E a nossa memória colectiva regista a incapacidade das elites politicas do regime autoritário do Estado Novo e as consequências do fracasso da tentativa tardia de reforma durante o marcelismo. Em Portugal, nos anos sessenta, todos os responsáveis reconheciam a inevitabilidade de uma transição para a democracia pluralista. Todos os factores - a modernização económica, a urbanização acelerada, a emigração europeia, para não referir sequer as dimensões externas, como a integração nas Comunidades Europeias - apontavam claramente nesse sentido.
Do mesmo modo, em Portugal, todos os responsáveis reconheciam a inevitabilidade da descolonização. A partir do momento em que os movimentos nacionalistas demonstraram a sua força politica, todos os factores - o exemplo das outras potências coloniais europeias, a pressão dos nossos aliados, a comunidade internacional, e mesmo o peso do esforço militar nacional - apontavam claramente para que se encontrasse uma solução política para o impasse em que se estava.
Todos conhecemos os efeitos da recusa da realização das reformas.
É certo que o essencial depois pôde ser alcançado, graças à instauração de um regime de democracia pluralista em Portugal. Mas ainda hoje sentimos o peso dos erros cometidos pelo adiamento das reformas, que provocou uma revolução, com todos os seus custos económicos e sociais inevitáveis. Sem qualquer justificação razoável, perderam-se anos - anos de democracia, anos de paz, anos de modernização.
O impulso do 25 de Abril, a institucionalização da democracia politica e a integração de Portugal na Comunidade Europeia, bem como as extraordinárias mudanças internacionais no fim da guerra fria, marcaram um período excepcional de modernização politica, económica e social em Portugal.
Esse período chegou ao seu fim, em Portugal e, também, na Europa, onde os últimos anos ficaram marcados, paralelamente, pela estagnação das economias e pelo reconhecimento da necessidade vital de reformas estruturais, nomeadamente a reforma do Estado de bem-estar social, nos principais países da União Europeia.
Acresce que o 11 de Setembro, bem entendido, veio ainda marcar, de forma trágica, a mudança dos tempos, para Portugal como para os seus aliados. O conjunto do sistema internacional, de que nenhum país se exclui, viu-se imerso num conflito prolongado e num período duradouro de instabilidade e de incerteza.
Temos pois consciência do tempo difícil que vivemos. Mas sabemos também que uma crise é, sempre, simultaneamente, um risco de ruptura e de declínio e uma oportunidade de mudança e de progresso.
No que nos diz respeito, e sabendo embora que o facto de vivermos em democracia representa uma diferença fundamental, o modo de evitar os riscos da ruptura é tirar as lições do passado e das consequências das reformas falhadas no fim do regime autoritário, para concentrar os nossos melhores esforços - do Estado, da comunidade politica, da sociedade - no caminho das reformas estruturais.
É disso que hoje vos quero falar.
As reformas estruturais exigem quatro condições essenciais.
A primeira é a definição pública de um projecto claro e coerente, sem ambiguidades quanto ao seu sentido fundamental e sem compromissos paralisantes, cuja força é tanto maior quanto mais claro for o mandato democrático. A segunda é o empenho decidido do conjunto dos responsáveis governamentais, que não podem continuar a esconder as reformas por detrás de pretextos conjunturais ou laterais. A terceira é a necessidade de uma pedagogia constante, indispensável não só para mobilizar os agentes económicos e sociais portadores da mudança, como para motivar o conjunto da comunidade nacional e da opinião pública. A quarta é a recusa terminante das medidas parcelares e sectoriais, um hábito que deve desaparecer para dar lugar a uma verdadeira dinâmica de reforma.
As reformas são decisões politicas e não são neutras. Os responsáveis políticos têm a exclusiva responsabilidade de definir as reformas estruturais e mais ninguém detém a legitimidade para as impor e para as realizar.
As reformas são processos internos, que respondem aos nossos problemas com as nossas soluções. É preciso ultrapassar o método de "importação da racionalidade" que foi usado por todos os governos para acelerar a nossa integração europeia e recuperar autonomia conceptual e decisória na definição das reformas estruturais. A nossa posição na primeira linha da construção europeia em nada prejudica a permanência de uma agenda nacional, de que as reformas estruturais são parte integrante.
A chave das reformas é o Estado democrático, não o esqueçamos.
Sem um Estado forte, sem instituições legítimas e democráticas, sem capacidade de decisão estratégica, nada é possível.
O Estado deve federar à sua volta os agentes da mudança, para formar uma aliança de progresso com a sociedade contra os interesses conservadores que procuram bloquear e adiar as reformas necessárias. O Estado deve poder formar os consensos indispensáveis para uma mudança pactuada, evitando rupturas dispensáveis. O Estado tem de reformar a administração pública, de modo a melhorar a qualidade das organizações e dos meios e a restaurar a tradição do serviço público. O Estado, enfim, tem de poder ultrapassar divisões inutéis que prejudicam a unidade de decisão no processo das reformas.
O sentido estratégico da nossa evolução está traçado nas suas linhas fundamentais, que foram confirmadas, repetidamente, pelo processo democrático.
Os nossos valores são os valores republicanos da liberdade, da fraternidade e da igualdade. O nosso regime é a democracia pluralista numa sociedade aberta. O nosso destino é a Europa e a afirmação da nossa vocação universalista.
A nossa vontade colectiva é a mudança.
A mudança reclama uma maior participação politica, uma reforma profunda dos partidos políticos, um bom governo e uma boa oposição, a devolução de poderes aos cidadãos, a linguagem da verdade nas relações entre as instituições representativas e a comunidade politica.
A mudança reclama um maior acesso ao direito, mais equitativo e mais célere, o respeito rigoroso pela autonomia, pela dignidade e pelos direitos de todos os cidadãos na sua relação com as instituições judiciárias.
A mudança reclama a realização de um programa de modernização da economia e da sociedade, de que as condições externas de competitividade se aliem à investigação, à inovação, à formação e à produtividade, onde o crescimento possa consolidar o Estado de bem-estar e garantir a solidariedade geracional.
O sentido das mudanças é o progresso, que está dependente das reformas estruturais. Não podemos perder o tempo da sua realização nem iludir a nossa responsabilidade na sua execução.
Sei que temos capacidade para vencer os novos desafios, com um esforço sincero de unidade.
Sei que somos melhores nos momentos de crise, quando somos obrigados a resolver os nossos problemas em condições de adversidade.
Sei que, para lá dos reflexos pessimistas, somos uma velha nação com uma confiança profunda no nosso destino colectivo.
Sei que a nossa vontade de construir uma sociedade justa e uma República moderna vai prevalecer."
Será que Pedro Santana Lopes percebeu?! Será que ele vai pensar nestas questões?!
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