"No acaso da rua o acaso da rapariga loura.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loura,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo o que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
Um traseunte olha para mim com uma estranheza ocasional!
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A raparia loura?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.
Poema do heterónimo tavirense de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, in 366 poemas que falam de amor, antologia organizada por Vasco Graça Moura (Quetzal Editores, 2003). A família paterna de Pessoa era de origens tavirenses e o poeta veraneava com frequência em Tavira. Oportunamente, a edilidade tavirense imortalizou o nome deste heterónimo na toponímia municipal, onde acompanha seu tio Jacques Pessoa...
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